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Imagens Preenchedoras

Texto curatorial de Yana Tamayo

As coisas maravilhosas dormem debaixo da pele das palavras


 

Um dos gêneros mais importantes da literatura islâmica medieval tratava das maravilhas da criação, ou mirabilia. Tais manuscritos reuniam, bem como a literatura medieval ocidental, narrativas sobre inúmeros seres sobrenaturais, mas também descreviam a imensidão e diversidade da natureza: os mares, os rios, as montanhas. Discutiam os reinos animal, vegetal, mineral ao mesmo tempo em que manifestavam o assombro diante do inexplicável, misterioso e fantástico. Ali estavam reunidos, em uma só obra, tratados de ciências naturais, magia e, por que não, poesia. Seu expoente mais popular foi escrito por Zakariyya al-Qazwini (1203-1283), Maravilhas das Coisas e Aspectos Milagrosos das Coisas Existentes.

 

Em sua primeira exposição individual na Galeria Luis Maluf, em São Paulo, a artista Desirée Feldmann apresenta um conjunto de obras inéditas intitulado Imagens Preenchedoras. Nas palavras da artista, o título “é o nome dado ao conjunto de desenhos nos quais venho trabalhando desde 2021, e que contém em sua essência códigos de símbolos e cores que formam, de maneira abstrata e não convencional, insígnias de proteção.” A mostra reúne trabalhos que resultam do processo de investigação pictórica e material da artista através dos desdobramentos espaciais originados da série homônima de desenhos dessas “imagens-amuleto”. 

 

Esta produção tem origem em suas indagações acerca do campo da pintura e as remotas relações estabelecidas ao longo do tempo entre humanos e os mistérios da natureza que os puseram a imaginar e representar. Diante de esculturas e objetos confeccionadas em tecido, volumes macios e de uma paleta cromática cuidadosamente articulada pela composição orgânica de formas que nascem umas por dentro de outras, a exposição nos convida a acessar alguns sentidos presentes em nossas experiências primeiras das coisas do mundo. Por experiências primordiais podemos compreender desde aquelas primeiras memórias que possuímos às experiências marcantes capazes de produzir assombro, encantamento e/ou de resinificar completamente lembranças anteriores. 

 

Os trabalhos nos convidam também a percebe-los visualmente de forma gradual: as peças se constituem pela superposição de múltiplos planos vazados. Camadas de estruturas modulares de tecido colorido e estofadas produzem concavidades e volumes sinuosos através do acúmulo e sobreposição. Cada forma parece nascer de dentro de outra, e de outra. Uma cor nasce depois de outra ter se repetido algumas vezes por dentro de si mesma criando um campo vibracional próprio. Camadas coloridas se multiplicam e sedimentam-se no espaço, como o gesto pictórico sobre uma superfície plana ou como na natureza se produzem as diferentes camadas estratigráficas de uma montanha designando as diferentes idades da Terra.

 

Aos poucos, Imagens preenchedoras nos propõe a possibilidade de adentrar um diálogo cósmico operado no contato dos corpos vivos com a matéria, com o mistério dos inícios, dos fins e a memória infinita do tempo. Poderíamos então, segundo este exercício de imaginação, adentrar um espaço sem tempo definido, contudo, preenchido de todas as camadas temporais imagináveis. Estes sedimentos produzem ritmos e temporalidades próprias ao passo que os nomes que designam cada obra nos sugerem imagens variadas de seres existentes ou imaginários, sensações corporais, paisagens, objetos cósmicos, ferramentas de orientação, oferendas, objetos feitos para proteção, objetos de devoção. 

 

Deparamos com esta inquietação diante do tempo presente nas coisas num texto escrito pela artista em 2022 em que ela descreve uma caminhada ao escalar uma montanha. Seu texto nos conta também do processo geológico que determina a criação destas formações: montanhas nascem nas fendas, no encontro entre uma placa tectônica e outra. Ou seja, montanhas nasceriam, segundo tal imagem, do vazio existente entre duas placas. 

 

Imaginar a montanha como um ente vivo, pulsante, ou como parte (ou parente) de um organismo ainda maior ressoaria em tudo o que sobre ele se apoia. Uma montanha que um dia esteve submersa num grande oceano guarda em seu interior conchas que parecem hoje estrangeiras à paisagem árida e fria que habitam. A concha carrega consigo a memória fóssil de uma era aquática, embora esteja agora muito longe dessa antiga casa marinha. Nossa capacidade de tocar por um instante estas outras dimensões temporais, espaciais e simbólicas nos mostra que a fabulação nos atravessa em forma de perguntas dirigidas tantas vezes ao invisível. Porque “toda forma guarda uma vida”, diria Gaston Bachelard. E toda vida necessita de um sopro mágico que preencha sua forma, encantando-a, do contrário, não seria vida.

 

Se para Jorges Luis Borges a escrita e a leitura nos apartam do mundo pela possibilidade de produzir universos fantásticos paralelos ao imaginar o que não existe ou que todavia não conhecemos, podemos pensar que também um movimento inverso é desempenhado pela experiência da arte ao nos conectar diretamente ao núcleo vital das coisas mais prosaicas que habitam o cotidiano, as relações e o mundo. Pensar sobre as tais Maravilhas das Coisas e Aspectos Milagrosos das Coisas Existentes é também disponibilizar-se a perceber e implicar-se de alguma forma com esta interdependência inevitável, por vezes terrível e também fecunda que delimita nossa existência material e anímica entrelaçando todos os seres. 

 

Desirée Feldmann convoca, assim, uma memória encantada e fértil das coisas, das maravilhas ocultas pelo desespero dos tempos, reunindo-as sob formas macias, ressonantes e dispersas: um óculos de mergulho, um relógio, uma concha, uma flor como oferenda, um mirante na montanha, um farol, um totem, uma vênus e uma lua nos levam a uma longa travessia pelas palavras, seus mundos e pela matéria vibrante fora delas, perto de nós. Imagens Preenchedoras reivindica a possibilidade de ativar os sentidos mágicos presentes numa produção primordial da poesia que conforma a experiência humana. 

 

 

Yana Tamayo

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